
Do Congresso Nacional às pequenas prefeituras do interior, os
crimes contra o patrimônio público são tão antigos quanto o próprio
país. Escândalos de corrupção garantem um fluxo constante de manchetes
na imprensa. Os esquemas fraudulentos e desvios de dinheiro público
cascateiam do nível federal até os pequenos municípios, mas é nestes que
seus estragos são mais claramente percebidos. Afinal, é no âmbito local
que as pessoas sentem diariamente a precariedade da infraestrutura e
dos serviços de educação e saúde. Nos últimos anos, é também neles que
os movimentos anticorrupção começam, aos poucos, a mudar essa história.
Ribeirão Bonito – cidade com cerca de 12 mil habitantes na região
central do estado de São Paulo – é um exemplo. Há 13 anos, ninguém
achava possível desgrudar corruptos da máquina pública. Hoje a população
não só sabe que é possível como vive atenta aos gastos da prefeitura. A
história começou a mudar quando um grupo de amigos resolveu doar tempo e
talento para ajudar a cuidar de Ribeirão Bonito. Eles achavam que sua
querida cidade estava sendo maltratada, com parques e praças
malconservados. Criaram a Amigos Associados de Ribeirão Bonito
(Amarribo) e elegeram uma praça para começar o trabalho.
A revitalização deu certo e injetou ânimo no grupo. Começaram a
discutir novas ações e deram-se contaram uma variedade de desvios – da
merenda escolar à aquisição de combustíveis. Foi o início de um trabalho
que se tornou referência nacional. Hoje a organização atua em duas
frentes: a associação local e uma rede de organizações da sociedade
civil com mais de 200 afiliados no País, a
Amarribo Brasil.
A investigação daqueles desvios, que somavam cerca de R$ 1 milhão, resultou em
ação civil pública contra o então prefeito, Antônio Sérgio de Mello Buzzá,
solicitando o seu afastamento. Em 2002, para escapar de uma prisão
preventiva, Buzzá renunciou e fugiu de Ribeirão Bonito. A notícia do
ex-prefeito fujão, bem como o trabalho da Amarribo para denunciar suas
falcatruas, foi parar no Jornal Nacional. A repercussão resultou na
prisão de Buzzá meses depois em Rondônia e em uma enxurrada de e-mails e
telefonemas para a Amarribo.
Tratava-se de pessoas e organizações de todo o Brasil querendo ajuda
para fazer o mesmo em seus municípios. “Entramos em pânico, não podíamos
deixar de atender, mas éramos voluntários”, lembra Verillo. Daí nasceu a
ideia de escrever uma cartilha que mostrasse o bê-á-bá do combate à
corrupção nas prefeituras.
A repercussão gerou apoio popular também em Ribeirão Bonito. As
pessoas passaram a acreditar que é possível mudar a gestão pública e a
associação começou a colecionar vitórias. Hoje a prefeitura divulga
mensal- mente os pagamentos e dá explicações quando surgem dúvidas.
“Antes o prefeito era visto como um intocável que pode tudo, hoje a
população sabe que, se desviar, ele pode ser retirado do cargo”, diz
Verillo.
Mas ainda há muito para avançar. A apresentação e a discussão do
orçamento municipal, por exemplo, ainda possuem uma linguagem cifrada
para o público. Verillo diz que isso acontece não apenas por má-fé, mas
também porque vereadores e gestores não sabem como fazer isso de forma
acessível.
Para a população em geral, fiscalizar e participar do orçamento são
coisas muito novas. Mas o movimento está crescendo. “O Brasil ainda não
tem tradição de participação popular nessa atividade”, aponta Verillo. É
um movimento lento, mas constante. E o contato com esse movimento
mostrou uma realidade estarrecedora a Verillo. “Não tínhamos noção de
que a corrupção era tão espalhada e tão profunda. A grande maioria das
cidades do Brasil tem desvio de recurso.” Um problema que custa muito
caro à população.
PRISÃO DE PREFEITOS
O jornalista Fábio Henrique Carvalho Oliva sabe bem o preço que a
população paga pelos desvios de dinheiro público em Januária, 65 mil
habitantes, Norte de Minas Gerais. Anos atrás seu pai morreu em uma
ambulância sem combustível nem oxigênio a apenas 30 quilômetros do
hospital para onde estava sendo transferido.
Na época a família ficou indignada e chegou a pensar em fazer algo,
mas acabou deixando passar. Alguns anos depois um sobrinho de Oliva foi
levado ao mesmo hospital com convulsões. Lá a família foi orientada a
levá-lo a Montes Claros, maior município da região – distante 160
quilômetros.
Segundo a funcionária que os atendeu, naquele momento não havia
médico de plantão, tampouco medicamentos, equipamentos ou suprimentos
necessários para atender o paciente. O drama pessoal reacendeu a revolta
da família que, junto com amigos, criou em 2004 a
Associação dos Amigos de Januária (Asajan).
Oliva baixou a cartilha anticorrupção da Amarribo e entrou em contato
em busca de orientação. Inicialmente, a Asajan era um grupo de oito
pessoas determinadas a investigar as contas públicas e desmanchar as
barragens que impediam o dinheiro público de chegar a seu destino.
Recebeu de presente de uma conselheira de saúde três caixas de cópias de
documentos coletados com funcionários indignados, mas temerosos. Ali, a
Asajan encontrou cópias de uma licitação para material escolar onde
constava a compra de 6 mil apagadores e um volume absurdo de cadernos,
considerando-se as 120 escolas de Januária. Descobriram ali um
desvio de R$ 350 mil que levou o prefeito Josefino Lopes Viana à prisão em 2006.
A partir desse momento, a população, que via o pessoal da Asajan como uma espécie de
Dom Quixote,
passou a acreditar que é possível combater a corrupção. “A prisão do
prefeito deu coragem aos cidadãos”, diz Oliva. Choveram no Ministério
Público denúncias de todo tipo, dos grandes esquemas até os pequenos
desvios, como motoristas tirando combustível de ambulância para veículos
particulares. Uma combinação entre o trabalho investigativo da Asajan e
a ação do Ministério Público e do Judiciário resultou em uma história
rocambolesca: entre 2004 e 2007, Januária teve sete prefeitos. Eles
encontraram desvios em tudo: licitações fraudadas, nepotismo,
contratações fraudulentas, até mesmo a máfia das ambulâncias [2] andou
por lá e resultou na prisão de outro prefeito, João Lima, sucessor de
Viana. E a cidade ainda não pode ser decretada zona livre de corrupção. O
atual prefeito, Maurílio Néris de Andrade Arruda, é alvo de duas ações
de improbidade administrativa e atualmente está com seus bens bloqueados
na Justiça.
Qualquer um que se detenha no noticiário se questiona, perplexo, como
a população continua elegendo políticos corruptos. Para Oliva, pelo
menos nos municípios, a explicação vai além do simples “o povo não sabe
votar” tão comum de se ouvir. Ele lembra que a parcela mais pobre da
população, a mais afetada pela corrupção por ser dependente dos serviços
públicos, é também a que menos se revolta e denuncia. Trata-se da
parcela mais vulnerável dos habitantes de cidades onde o prefeito
controla tudo: saúde, educação, segurança pública.
Quanto menor o município, mais difícil é se rebelar. Basta dificultar
uma vaga na escola, complicar um atendimento em saúde, forjar uma
batida policial, demitir ou repreender um parente que trabalha no
serviço público municipal – os primeiros a sofrer represálias quando
surgem denúncias. Por medo não se denuncia, por falta de opção e
esperança, vota-se. Oliva já foi agredido em um aeroporto, já sofreu
atentados e hoje anda em um carro blindado, entre outras medidas de
segurança. “Procuro não dar chance pro azar.”
ROUBAVA-SE ATÉ XEROX
Vem do Paraná um exemplo de que é possível eliminar a corrupção na
gestão municipal. Realeza, no Sudoeste do Estado, viveu uma
transformação radical nos últimos sete anos e meio. De quase
inexistente, a coleta passou a abranger 70% do esgoto do município; o
serviço de saúde foi melhorado; não faltam vagas nas creches; estradas
rurais foram recuperadas; até um programa de coleta seletiva foi criado.
O
prefeito Eduardo Gaievski
encerra seu segundo mandato aplicando cerca de 23% do orçamento na
saúde, 25% na educação e menos de 50% na folha de pagamento, como manda a
Lei de Responsabilidade Fiscal.
E tudo isso sem endividamento. Gaievski diz que a mágica é simples: se
não houver desvios, o orçamento do município dá para tudo.
Gaievski vem do setor privado, tendo construído uma carreira sólida em multinacionais como
Pepsi Co.,
Kraft Foods e
Fox Filmes do Brasil.
Em 2002 sofreu um grave acidente de carro na Nova Zelândia. Diz que
isso mudou sua vida e o fez voltar à sua cidade natal. Já conhecia o
trabalho da Amarribo através de amigos e começou a fiscalizar o poder
público. “Até xerox se roubava aqui”, conta. Em 2004, candidatou-se a
prefeito em uma chapa sem aliados, contra uma coligação de dez partidos.
Para surpresa geral, o azarão que estava fora da cidade há 18 anos
venceu e começou uma gestão profissional. Elaborou o plano diretor
participativo, implantou orçamento participativo, apresentou projetos
para receber verbas federais, conseguiu trazer até um dos campi da
Universidade Federal da Fronteira Sul.
Dar transparência às contas públicas foi uma de suas primeiras ações
como prefeito. Mandou instalar um mural no cruzamento das duas
principais avenidas da cidade, no qual, mensalmente, publica o balanço
das contas do município. No site da prefeitura, é possível acessar
informações do orçamento e, caso alguém tenha dúvidas, basta ligar para o
celular do prefeito, igualmente publicado no site. A reportagem fez o
teste, e foi ele mesmo quem atendeu.
Com sua experiência no setor privado, levou o planejamento para
dentro da gestão pública, atento aos mínimos detalhes – até mesmo a
compra de denta- duras e óculos, moeda corrente para compra de votos,
foi planejada e licitada conforme a demanda. “Não adianta discursar e
não ter serviços de qualidade para a população. Se a pessoa vai à escola
e não tem vaga, o discurso vai por água abaixo”, diz Gaievski. Prestes a
entregar o cargo em seu segundo mandato, Gaievski não receia ver
retrocessos. “A partir do momento em que as pessoas são empoderadas, que
elas veem que têm poder para decidir, muda sua relação com o poder
público