ENCONTRO INADIÁVEL
Marcaram o encontro debaixo da velha aroeira da serra. Árvore mais do
que secular, como atestavam o seu porte e diâmetro. Naquele dia, a velha árvore
estava despida de folhas, mas ajaezada de pequenos frutos assemelhando-se, nos
cachos, a penduricalhos de pequenas estrelas. Servia de divisa na cumieira da
serra desde tempos imemoriais tendo, até então, escapado ao “machado bronco”.
Um deles, como é próprio da juventude, subiu de forma lépida sem se
preocupar com o aclive, um tanto íngreme, nem com os pequenos obstáculos na
forma de pedras, troncos caídos, raízes, etc. Chegou lá em cima um tanto
“esbaforido”, as faces coradas, alegre, vivaz. Bem trajado, bem barbeado,
sapatos cintilantes, perfume da moda, mal sabia o que teria pela frente.
O outro, idoso, castigado pelo tempo, cansado das vicissitudes da vida,
alquebrado pelas desilusões, mas ainda certo da realização de metas dantes
sonhadas, subiu um tanto trôpego, vista curta, passos pequenos, quase “engomando”.
Ombros caídos, cabelos encanecidos, barba longa, vestes e sapatos rotos. De
perfume, apenas o odor da mataria que teimava em atrapalhá-lo na sua, já tão
dura, subida. Vez por outra, parava para tomar um fôlego e aproveitava para
olhar para trás e para baixo.
Como tudo
tinha mudado em tão pouco tempo! Onde estava aquela quixabeira das margens do
riacho? Da craibeira restava ainda, resquícios do ouro da florada recente.
Aquele toco enegrecido, era tudo o que restava da frondosa oiticica que sombreava
o poço no pequeno riacho, agora seco e aterrado. O juazeiro mutilado na sua
copa para atender a voracidade dos animais, apresentava vários ferimentos no
tronco. Alguém o raspara em busca das suas propriedades medicinais e, ou,
cosméticas.
O que fora
feito daquela pequena matinha rica em imburanas de cheiro, pereiros, angicos,
jucás, paus d’arco roxos, baraúnas, juremas pretas, mofumbos, macambiras,
caroás, xique-xiques, facheiros, mandacarus, palmatórias, coroas de frade,
mofumbos, mororós, imburanas de espinho, barrigudas, icós, malvas,
moleques-duro, quebra-facas, marmeleiros? Onde estavam os ninhos dos
beija-flores, tão protegidos pelas urtigas e xique-xiques? Cadê as faveleiras,
abrigos das casacas de couro, rolinhas e juritis? E aquela catingueira “ocada”
que escondia uma cascavel com mais de vinte “rusgas”?
Que fora
feito dos preás, mocós, pebas, “verdadeiros”, raposas, gatos do mato, furões,
carcarás, tacacas, camaleões, papa-ventos, concrizes, canções, xexéus, galos de
campina e seriemas? Até mesmo as cigarras já não cantavam mais!
Como uma
paisagem mudara tanto em tão pouco tempo? Substituindo toda aquela diversidade
via-se agora, carreiras e mais carreiras de uma, planta para ele desconhecida.
Havia uma rigorosa disciplina naquela distribuição. Parecia mais um exército
invasor que cobrava o seu tributo aos vencidos. Além dos despojos de guerra –
lenha, carvão, estacas, mourões, varas, estacotes – notava-se claramente a
“escravização” da terra e o sugar do seu "sangue". Aquela terra
outrora vermelha, corada, gorda, fértil, apresentava-se agora anêmica, gretada,
endurecida.
Subiu mais
um pouco e novamente parou. Lembrou-se que no poço onde parara lá embaixo para
dessendentar-se, o acesso a água estava mais difícil. A água mais profunda,
mais salobra. O que fora feito daquela água cristalina, ao alcance da mão,
dulcíssima? O que fora feito daquela bondosa senhora, do seu marido, da legião
de filhos e que rezava contrita diante de uma estampa do Coração de Jesus, por
ocasião da sua passagem em época passada, na humilde, mas asseada, casinha de
taipa ao lado de frondoso imbuzeiro? Passara por lá, vira apenas uma tapera com
currais arruinados. De vivos apenas os cupins no seu lento decompor.
Finalmente,
chegou no cimo da serra! O outro, já impaciente, trajava o branco assim como
ele. Mas como destoavam. Aquele, vestindo calça tipo jeans e camisa pólo de um
branco resplandecente, última moda, sem nenhum vinco ou amarrotamento, sapatos
de tênis confortáveis, relógio “doirado”, celular de funções variadas, cabelo
bem aparado. Usava ainda, reluzente aparelho nos dentes.
Este,
trajando camisa e calça de um branco amarelecido. Roupas limpas, porém
denunciando uma miríade de rasgões e manchões costurados às pressas. Sapatos de
boa marca, porém foscos. Na algibeira, pequeno relógio de corda, um luxo que
ainda teimava em possuir. O seu sorriso, cansado, denunciava falhas e nas faces
vincos profundos pareciam competir com os da terra ressequida lá embaixo.
Apertaram
aos mãos! Um de mãos lisas e bem tratadas, o outro, de mão nodosas e calosas.
Nem pareciam parentes, tão díspares estavam no trajar e na aparência. Fosse só
isso, tudo bem! Com alguns minutos de conversa, verificaram destoar na forma de
ver o mundo. Um, mais comedido pela maturidade e pelo sofrimento, procurava
mostrar que a pressa no tirar da natureza, no ir e vir diário, estavam
desabitando o campo e desumanizando o mundo. O outro, discordando frontalmente
citava os milagres da indústria, da medicina e anunciava que o homem estava
cansado de “coadjuvar” a Deus e que agora passaria a ser o ator principal.
Tinha conhecimento suficiente para isso!
Entretidos
nesta “palestra”, não notaram o adiantado da noite e eis que de súbito, como
num movimento ensaiado, consultaram os seus relógios e verificaram que faltavam
poucos segundos para o grande momento. O mais velho, lembrou-se dos
ensinamentos recebidos no ano anterior e, de como desdenhara daquele amável
ancião que teimava em lhe alertar. Achou-o, naquele dia, ultrapassado e porque
não dizer, caduco!
Hoje, era
ele quem estava sendo desdenhado, e com um agravante, sentia-se culpado pela
matinha que fora derrubada, pela água que escasseava, pela família que migrara,
pelos animais que sumiram, pela sufocação do mundo envolto em fumaça. Tivera
todo o tempo do mundo para evitar tudo isto. Mas ficara embevecido com as
festas carnavalescas, joaninas e natalinas. Pouco prestara atenção a Semana
Santa, ao Nascimento de Cristo, aos dias 28 de março, 05 de junho, 21 de setembro
e 04 de outubro. Comemorara cada carro fabricado com regojizo, pois estava
gerando emprego para dezenas de famílias. Aceitara mais uma usina atômica, mais
uma indústria sem certificação ambiental, mais uma madeireira clandestina, mais
um complexo imobiliário. Meus Deus! Como
deixara passar tudo aquilo?
Agora,
observava gestos e semblantes do jovem que estava na sua frente. Como dizer
tudo isso para ele? Como alertá-lo para o que viria? Como contribuir para que o
mesmo não tropeçasse tanto? Verificou, alarmado, que não tinha como fazer mais
isto, pela impetuosidade do jovem e pelo tempo que restava. Era tarde, muito
tarde!
Mais uma
vez, o mundo seria prejudicado pelo excesso de conjecturas e pela pobreza de
decisões. Ele, com toda a experiência que havia adquirido, não tivera tempo de
executar nada. O outro já agora não o ouvia mais! Nos céus das cidades
circunvizinhas, foguetões começaram a iluminar a noite. Ouvia-se agora, ruídos
de músicas e aqui e acolá trechos de felicitações.
E foi assim,
que o Ano Velho se despediu do Ano Novo!
Por Daniel Duarte Pereira - Presidente do Instituto Histórico e
Geographico do Cariry -Direto da Villa Nova da Rainha/PB.
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