Ler significa reler e
compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a
partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para,
entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão
de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.
A cabeça pensa a partir de onde
os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem
olha. Vale dize: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em
que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e
que esperanças o animam. Isso faz da
compreensão sempre uma interpretação. (trecho retirado do livro a águia e a galinha, de Leonardo Boff).
O
ENCANTO DOS ORIXÁS
Quando atinge grau elevado de complexidade, toda cultura encontra sua expressão
artística, literária e espiritual. Mas ao criar uma religião a partir de uma
experiência profunda do Mistério do mundo, ela alcança sua maturidade e
aponta para valores universais. É o que representa a Umbanda, religião, nascida
em Niterói, no Rio de Janeiro, em 1908, bebendo das matrizes da mais genuina
brasilidade, feita de europeus, de africanos e de indígenas. Num contexto de
desamparo social, com milhares de pessoas desenraizadas, vindas da selva e dos
grotões do Brasil profundo, desempregadas, doentes pela insalubridade notória
do Rio nos inícios do século XX, irrompeu uma fortíssima experiência
espiritual.
O interiorano Zélio Moraes atesta a comunicação da Divindade sob a figura do
Caboclo das Sete Encruzilhadas da tradição indígena e do Preto Velho da dos
escravos. Essa revelação tem como destinatários primordiais os humildes e
destituídos de todo apoio material e espiritual. Ela quer reforçar neles a
percepção da profunda igualdade entre todos, homens e mulheres, se propõe
potenciar a caridade e o amor fraterno, mitigar as injustiças, consolar
os aflitos e reintegrar o ser humano na natureza sob a égide do Evangelho e da
figura sagrada do Divino Mestre Jesus.
O nome Umbanda é carregado de significação. É composto de OM (o som originário
do universo nas tradições orientais) e de BANDHA (movimento inecessante da
força divina). Sincretiza de forma criativa elementos das várias tradições
religiosas de nosso pais criando um sistema coerente. Privilegia as tradições
do Candomblé da Bahia por serem as mais populares e próximas aos seres humanos
em suas necessidades. Mas não as considera como entidades, apenas como forças
ou espíritos puros que através dos Guias espirituais se acercam das pessoas
para ajudá-las. Os Orixás, a Mata Virgem, o Rompe Mato, o Sete Flechas, a
Cachoeira, a Jurema e os Caboclos representam facetas arquetípicas da
Divindade. Elas não multiplicam Deus num falso panteismo mas concretizam, sob
os mais diversos nomes, o único e mesmo Deus. Este se sacramentaliza nos
elementos da natureza como nas montanhas, nas cachoeiras, nas matas, no mar, no
fogo e nas tempestades. Ao confrontar-se com estas realidades, o fiel entra em
comunhão com Deus.
A Umbanda é uma religião profundamente ecológica. Devolve ao ser humano o
sentido da reverência face às energias cósmicas. Renuncia aos sacrifícios de
animais para restringir-se somente às flores e à luz, realidades sutis e espirituais.
Há um diplomata brasileiro, Flávio Perri, que serviu em embaixadas importantes
como Paris, Roma, Genebra e Nova York que se deixou encantar pela religião da
Umbanda. Com recursos das ciências comparadas das religiões e dos vários
métodos hermenêuticos elaborou perspicazes reflexões que levam exatamente este
título O Encanto dos Orixás,
desvendando-nos a riqueza espiritual da Umbanda. Permeia seu trabalho com
poemas próprios de fina percepção espiritual. Ele se inscreve no gênero dos
poetas-pensadores e místicos como Alvaro Campos (Fernando Pessoa), Murilo
Mendes, T. S. Elliot e o sufi Rumi. Mesmo sob o encanto, seu estilo é contido,
sem qualquer exaltação, pois é esse rigor que a natureza do espiritual
exige.
Além disso, ajuda a desmontar preconceitos que cercam a Umbanda, por causa de
suas origens nos pobres da cultura popular, espontaneamente sincréticos. Que
eles tenham produzido significativa espiritualidade e criado uma religião cujos
meios de expressão são puros e singelos revela quão profunda e rica é a cultura
desses humilhados e ofendidos, nossos irmãos e irmãs. Como se dizia nos
primórdios do Cristianismo que, em sua origem também era uma religião de
escravos e de marginalizados, “os pobres são nossos mestres, os humildes,
nossos doutores”.
Talvez algum leitor/a estranhe que um teólogo como eu diga tudo isso que
escrevi. Apenas respondo: um teólogo que não consegue ver Deus para além dos
limites de sua religião ou igreja não é um bom teólogo. É antes um erudito de
doutrinas. Perde a ocasião de se encontrar com Deus que se comunica por outros
caminhos e que fala por diferentes mensageiros, seus verdadeiros anjos. Deus
desborda de nossas cabeças e dogmas.
Leonardo Boff é autor de Meditação
da Luz. O caminho da simplicidade. Vozes 2009.